quarta-feira, 14 de julho de 2010

Penamacor é o concelho mais envelhecido do país

Juventude sequestrada

Estudo coloca os pontos nos i’s no despovoamento da região. Penamacor foi considerado o concelho mais envelhecido do país. Mas está longe de estar só nesta batalha. Um S.O.S para quem o quiser ouvir. Haverá?

O CABELO branco espera no chão da barbearia pela passagem da vassoura. Traga-se o tempo com vagar. Descose-se o fio da conversa tépida. Com paciência, porque o tempo não corre contra ninguém. Nem ninguém corre contra o tempo. Na barbearia de João Gonçalves, em Penamacor, vivem-se dias abrigados de um Verão com ares de impiedoso. Mais um, como tantos outros, mais quentes ou menos quentes, com mais ou menos gente nas ruas. A vila vagueia na planície da serenidade. Tal como deve ser. Ao tempo nada deve porque ele nada lhe trouxe. Apenas levou. Gente. Quanto muito é Penamacor quem deve pedir contas ao tempo.

A juventude roubada. A juventude sequestrada. Sente-se o armistício, um estranho pudor entre a pedra deste secular território onde desponta o castelo que conferiu importância estratégica à vila na defesa de uma fronteira, que agora serve para muitos passarem para além do sonho de outras vidas em outras paragens, longe de um tempo severo que esvaziou ruas, casas e escolas e apenas encheu lares. Resiste-se como se pode. Ou melhor, assiste-se como se pode. Culpar o quê? Isto é uma história demasiado longa, de origens bem fundas e longínquas. Como lutar contra uma infinita corrente com remos de madeira?

Culpar o quê?

Culpar quem?

Fora desta barbearia de Penamacor é o mundo que anda ao avesso, invertendo a pirâmide das idades de um concelho, que já é o mais envelhecido de Portugal. Aqui dentro, tudo perfeito, tudo dentro de uma insuspeita normalidade: cabelo branco cortado de fresco caído aos pés da cadeira vazia; aqui onde nada se descose, nada se desatina. Há um férreo escrúpulo nesta tela que vai envelhecendo ao sol. Porque se isto já anda tudo ao contrário, de pernas para o ar, para quê complicar mais as coisas?

Que flua o destino.

Um estudo feito para o “Diário de Notícias” por Maria Filomena Mendes, docente na Universidade de Évora e presidente da Associação Portuguesa de Demografia, coloca Penamacor na cauda do envelhecimento populacional do país: há 545 pessoas com mais de 65 anos por cada 100 jovens até aos 15 anos. O concelho tem vindo a perder população década após década. Mas não está sozinho. Por exemplo, Vila Velha de Ródão está em penúltimo: 537 idosos por cada 100 jovens. A média nacional é de 118 idosos por cada 100 jovens. A Beira Interior, no seu todo, verga-se sob um peso invisível. A autora do estudo, em declarações ao DN, diz que com estes números, estes territórios estão condenados a prazo, não existindo possibilidade de regeneração natural: “são regiões com uma fertilidade muito baixa, um número de idosos muito elevado e se não conseguirem fixar os jovens que ainda lá residem e atrair imigrantes vão ter imensos problemas”.

A população não se consegue regenerar e as quebras demográficas são violentíssimas. Em Penamacor, em 50 anos perdeu-se 65 por cento da população do concelho. A vila sede de concelho já não alcança os dois mil habitantes. Em sete anos (2000-2006) registaram-se apenas 204 nascimentos no concelho. Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística estimavam, para o final de 2009, uma população de 5.522 habitantes no concelho, menos 110 em relação ao ano transacto. Em 1981, tinha 9.524 habitantes, em 1991, 8.115 habitantes e em 2001, 6.658 habitantes.

Dentro desta barbearia, no centro da vila, lança-se um olhar lá para fora onde o mundo anda mesmo às avessas nestas terras da raia. Estes cabelos brancos há pouco cortados ali no chão são uma crónica perfeita de um tempo amparado nos bancos do jardim. João Oliveira Gonçalves, 74 anos, o barbeiro, lança a âncora ao passado e recorda uma Penamacor “mais populosa, com mais actividade, embora fosse mais ligada à agricultura. Agora não tem nem uma coisa, nem outra. Tinha mais comércio, porque havia mais gente. Isto tudo foi-se despovoando, sempre migrou muita gente para Lisboa e para outros grandes centros. Vieram também as grandes emigrações e isto foi definhando. Cada vez tem menos vida, quem faz o movimento são as pessoas”. Desde os 14 anos que o seu mundo passa por aqui, por este lugar no centro. Conheceu o caminho de Lisboa para cumprir o serviço militar, mas as “circunstâncias da vida” fizeram-no voltar para a sua terra de sempre. “Comecei a trabalhar por minha conta a partir de 1959. Na altura havia mais barbearias. Mas depois começou a faltar gente, os mais idosos terminaram a sua actividade e não houve sucessores”.

Por estes dias “cá vou aguentando isto com alguma clientela da velha guarda. Estou aqui não por obrigação, mas por devoção. Já cortei o cabelo a um par de gerações, aos avós, aos pais e aos netos. Já vou na quinta geração. Mas, agora, esta última geração já não vem aqui muito para os velhos. Já não são muito atractivos para estas novas gerações”.

E o futuro?

“Eu gostava que a porta ficasse aberta, mas não estou a ver muitas hipóteses.”

Domingos Cruchinho faz parte do estrato etário mais representativo de Penamacor. Tem 74 anos. Em 1964, foi apanhado pela grande vaga de emigração e foi para a França. Regressou em 1982 e por cá ficou. “Tenho seguido a vida como carpinteiro”. Mas antes de ir para França a sua arte era a de sapateiro: “tinha uma oficina e ensinei seis rapazes a trabalhar e todos ficaram aptos. Na altura isto aqui era mau. O primeiro ordenado que recebi lá foram seis contos por um mês. Aqui nem um conto de réis arranjava por mês. Fui e deu resultado. Em 1964, abalou daqui muita gente e ainda lá há alguns, mas poucos. Ficaram lá os filhos deles e os netos”.

A Penamacor que deixou em 1964 e a de hoje “são muito diferentes. Havia cá muita gente, mas a vida era outra”.

Em Penamacor, a Câmara Municipal e o lar são os maiores empregadores. A pequena indústria e o comércio garantem a outra fatia substancial da empregabilidade de um concelho que vive com o drama que assola muitos outros na Beira Interior. Um círculo vicioso de difícil resolução: se não há pessoas, os investimentos não se fixam, mas se os investimentos não se fixam, não se podem manter os quadros. E os reformados já são mais do que a população no activo. Num espaço onde as escolas de primeiro ciclo continuam a fechar sucessivamente por falta de alunos que as permitam manter abertas ao abrigo dos limites mínimos impostos pelo Ministério da Educação, o trajecto escolar afunila-se até ao 12.º ano, onde os poucos alunos não dão para constituir turmas que diversifiquem as áreas de ensino. Quem procura outras opções, terá que procurar outra escola.

Da ourivesaria gerida por Maria Ferreira olha-se “para uma clientela a diminuir... Antes tínhamos o quartel, tínhamos a PSP, tínhamos a Guarda Fiscal e hoje não temos nada. Tinham cá as suas famílias, as suas casas”. Aos 80 anos já não guarda esperanças que o tempo volte para trás: “os jovens vão-se todos embora, os velhos vão morrendo...” Longe vão os tempos em que “havia muita clientela, havia muita gente”.

No meio disto tudo, o que pode fazer um autarca? Palavra a Domingos Torrão, presidente da autarquia.

O que fazer para mudar o cenário? “Isso é o que pensamos desde que estamos aqui”, confessa. “Nós vamos fazendo o que podemos dentro das limitações orçamentais e constitucionais. Há municípios que têm recursos óptimos, têm recursos endógenos que são de aproveitar, mas depois falta o resto: falta a iniciativa privada, falta a discriminação positiva por parte do Estado para que as coisas avancem”. Por isso, defende o autarca, “não podemos baixar os braços nem desanimar. Já houve ciclos na história de Portugal em que isto aconteceu e nós continuamos a acreditar que haverá um dia em que estes territórios terão alguém a olhar para eles de forma diferente”.

Domingos Torrão avisa que “são os governantes e a Assembleia da República que têm que definir estratégias para o país e saber se esta parte do território interessa ou não ao país. Olho para o país e aquilo que me fazem ver, o que me querem vender, é que o país é de Braga a Setúbal e o resto é para ir mantendo. Em termos estratégicos nós temos que saber se o Estado, os governos que por lá têm passado, estão apostados ou não em dar condições a este território, onde “continuamos a definhar”.

Fazemos questão de acabar onde começamos. Lá em cima, na velha barbearia de João, o mundo está avesso a este mundo ao avesso. Nas latitudes do encanto e do desencanto, esta é apenas uma simples crónica de um tempo que sequestrou a juventude.

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