quinta-feira, 11 de março de 2010

Os que forçaram a porta para a terra dos sonhos

A pobreza assombrava um país rural encerrado em si sob o manto da ditadura. Pela raia, milhares de portugueses encontraram a saída para França. A guiá-los e a escondê-los estiveram homens como estes.

A NEBLINA dos tempos não deixa ver com total clarividência a plena constelação de desígnios que leva à saída, à escondida amargura do adeus, manifestada em pequenos gestos. Emigrar é deixar para trás, é trocar o rol das infelicidades conhecidas por um travo de sonho. É assim que vai construindo o caminho de saída. É assim que a decisão se vai alimentando, nas agruras do quotidiano, cimentada na escassez de tudo para quase todos. Numa sardinha para três. Para trás ficou um Portugal de ditadura, de pobreza, de uma imensa mágoa, um país de esperança lívida, refém dos seus embargos psicológicos e amarras avulso.

Um adeus é complexo. Aquele adeus por trás deste gesto, deste último olhar para a terra antes de se desaparecer na noite das amarguras. Na noite que está aqui como eterna testemunha, nas longas vigílias a que os Pirenéus ainda distam. Parece uma vida. À frente alguém os leva, os guia nas fintas às polícias portuguesas e espanholas. São eles que os entregarão no seu destino e na volta trarão metade de uma foto que se irá juntar a outra que ficou. Quando a foto se completar, a missão foi cumprida: está em França. Esta foi a história de milhares de portugueses.

O coordenador do Observatório da Emigração, Rui Pena Pires, avançou recentemente no Parlamento durante na Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas que entre 70 e 75 mil portugueses emigram cada ano. Sem certezas absolutas, porque não existem dados absolutamente fiáveis que possam dar a escala da exactidão à saída. Mas se o indicador avançando estiver próximo da realidade actual, aproxima-se das médias dos anos 60 do século passado, mas abaixo dos anos de maior emigração. O contexto económico foi e será sempre o factor determinante para este filme. Foi-o a preto e branco, a tons de sépia, onde o salto, a mala de cartão, a pobreza e a quase total ausência de esperança num país amordaçado pela ditadura.

Impelidos para a porta de saída, os caminhos de quem emigra não são lineares. São razões que se somam às razões. Hoje emigram mais jovens com formação académica superior. O espaço Schengen é um livro aberto de oportunidades à distância de um bilhete de avião ou de autocarro, um espaço de liberdade, de mais amplas oportunidades. Emigrar continua a ser uma aventura. Continua a ser saudade, continua a ser ausência sofrida. Mas hoje, os entraves são menores e as oportunidades de mobilidade social superiores. Este Portugal não é aquele Portugal que fomos descobrir na memória da suas gentes. Nestas terras da raia já não escondem homens, mulheres e crianças à espera da melhor altura para dar o salto, ao abrigo do olhar das polícias de Portugal e Espanha, em busca de um trabalho qualquer em França para garantir a sobrevivência. A terra do sonho era demasiado longe, e o receio demasiado perpétuo e demasiado perto. O medo era uma sombra, mesmo de noite. Naquele tempo, por aqui, muitas vezes, a alternativa à pobreza era a própria pobreza.

Segundo o Observatório de Emigração, os homens são maioritários nos principais países de acolhimento de cidadãos portugueses. No Canadá são 71 por cento dos emigrantes portugueses presentes naquele território, 64 por cento em Espanha, 58 por cento na Venezuela, 54 por cento na Alemanha, 55 por cento na Suíça, 53 por cento no Brasil, 52 por cento no Luxemburgo e 51 por cento em França. Apenas no Reino Unido há mais mulheres emigradas do que homens, tendo as primeiras uma taxa de presença de 52 por cento. Em França residem 567 mil cidadãos nascidos em Portugal, 217.540 nos Estados Unidos da América, 213.190 no Brasil, 157.455 na Suiça, 150.390 no Canadá, 136.171 em Espanha, 91.225 na Alemanha, 77 mil no Reino Unido, 53.478 na Venezuela e 41.690 no Luxemburgo.

Fomos ao passado à boleia das memórias de gente que viveu este fenómeno que marcou Portugal do século XX. Fomos às terras do confronto, da passagem, dos passadores de gente em busca do além-Pirinéus. A raia dos medos, dos temores expressos em cada passo, nas noites de caminhada cerradas e encerradas por todas as dúvidas. Da lua cheia no guiar dos passos silenciosos, medidos e temerosos. Nestas serranias que agora pisamos era a luta entre os que forçavam as trancas da porta de saída para a terra das oportunidades e os guardiões do templo, de um templo com muitas salas entregues ao vazio. Da pobreza.

Fomos falar com gente corajosa.

Fomos à raia.

Fomos ao pretérito dos dias.


No tempo em que a PIDE andava por estas aldeias

O SALTO para França custou-lhe 6.500 escudos em 1956. Tinha 18 anos e foi com o pai, que pagou idêntico valor para os guiarem até à terra prometida, onde teriam trabalho e ganhariam o dinheiro que aqui não podiam sequer sonhar. Zona rural sem qualquer escape visível para a pobreza, França era o destino quase certo para a esmagadora maioria dos homens. António Manuel Esteves hoje tem 72 anos e aquele longínquo ano de 1956 está presente na memória como se tivesse sido na última semana. Voltou para Fóios há apenas seis anos. Em França ficaram os filhos e os netos. Voltou para onde sempre queria voltar. Desde aquela noite de Outubro de 1956. Está no ponto de partida da sua história. Mas esta aldeia já não é a aldeia de há meia década. E a realidade social também não.

“Eram tempos de muita pobreza e não era só de pobreza... eram tempos de muito trabalho. Muita gente só se governava aqui do contrabando”. A sua vida no contrabando começou aos oito anos: “nessa idade já trazia azeite de Espanha. Depois trazia seda, luvas... o que ca-lhava, onde podíamos ganhar alguma coisita.” As autoridades espanholas e portuguesas vigilantes destes movimentos na raia nunca conseguiram apreender os carregos e dar problemas a António. “Graças a Deus nunca tive problemas”. Ri. “Para Espanha levava-se naquele tempo muito estanho e para cá trazíamos amêndoa, por exemplo. Era muita gente a fazer isso... era a raia toda... era do que a gente se governava. Ainda bem que temos aqui Espanha, que deu jeito a muita gente”.

Aos 18 anos, o mundo do contrabando ficou arredado e França afigurou-se como o destino para ganhar a vida. O seu pai já tinha tentado quatro vezes chegar lá, mas “foi sempre detido em Espanha e mandavam-no para cá”. Até que à quinta tentativa quis ir com o pai. “Dessa vez passámos bem os dois... e lá fomos governar a nossa vida... mas para passar ainda demorámos bastante tempo. Saímos daqui a 26 de Outubro de 1956, estivemos quatro dias em Pamplona e atravessámos a fronteira para França no Dia de Todos os Santos, a 1 de Novembro. Estivemos mais seis dias dentro de uma casa em França, até que nos vieram recuperar. O passador é que tratou de tudo... levou o tempo que tinha que levar”. Quase sempre com a noite como companhia.

Os 13 contos do salto dele e do salto do seu pai foram amortizados num ano de trabalho em França. E não só. “Ao fim de um ano viemos e comprámos um prédio, que ainda temos aí, por 32 contos. Lá ganhava-se muito mais. Comecei a trabalhar por 125 francos à hora e quando fui para Paris já estava com 180”.

O seu primeiro trabalho foi “a partir pedra numa estrada numa pequena cidade e dali fui para Paris, onde trabalhei em jardinagem o resto da minha vida. Fiz jardins durante 42 anos”. Reformou-se e voltou. O Portugal de hoje é muito diferente. O Portugal que abandonou numa noite de Outono de 1956 “era muito diferente, muita pobreza. Hoje a vida está também difícil, mas vive-se muito melhor do que antigamente. Vivia-se mal, com dificuldades. Saiu daqui muita gente. A primeira fornada fomos nós e depois eram sete ou oito de cada vez. A aldeia ficou sem homens para trabalhar.” Foi uma vida dura em França, que ninguém se iluda. “Ninguém nos dá dinheiro... temos que trabalhar”.

Três anos a fugir da PIDE

A PIDE andava por ali, a farejar os “passadores”, aqueles que levavam os portugueses que queriam ir para França. Houve alguns que conheceram bem de perto as técnicas interrogatórias da polícia política da ditadura. Artur Dias teve a PIDE à perna e andou três anos em fuga à força de um mandato emitido. A sua mulher não teve tanta sorte e esteve 69 dias presa sob custódia.

Antes do mandato de detenção ser uma realidade, Artur foi interrogado pela PIDE duas vezes: “uma vez fiquei absolvido. Da outra vez aplicaram-me uma multa por cada homem que passei”. Por estas “respondi e paguei”. Mas o pior estava para vir.

Recuando nas décadas, até àqueles anos efervescentes na raia recorda que, então, “houve outra denúncia” que coincidiu “quando a PIDE veio também para a Guarda”.

Essa denúncia terá sido involuntária por parte de outro passador que caiu numa armadilha da PIDE que montou com alguns dos seus elementos a fingirem estar interessados em dar o salto e em contratarem os seus serviços. O nome da Artur Dias veio à baila durante a conversa. Ficaram em trabalhos.

“O meu advogado avisou-me: «senhor Artur ponha-se a pau que tem aqui uma denúncia e você vai ser preso»”. A visita da PIDE era uma questão de tempo. E, de facto, não demorou. “Um dia vieram aqui à minha casa e quando os vi acho que até saltei por esta janela”. Artur, 77 anos, homem rijo, olha de soslaio para a janela que está atrás de si. Estamos na sua cozinha, aquecidos pelas histórias e pela lareira. Aí desenrola um interminável rol de acções alavancadas por uma inusual coragem, mas, afinal, tão comum às gentes da raia. A coragem, essa capa dura, era o que lhes permitia ousar procurar, ousar sair. Ousar, apenas.

“Eles vieram aqui para me prender ou para me ouvirem... não estava cá... estava na caça e disseram à minha mulher para me apresentar no posto da Guarda Fiscal de Aldeia do Bispo. Quando cheguei da caça fui lá, mas os elementos da PIDE já lá não estavam. Deixaram o mandato de captura e andei três anos fugido”. Lá vinha a casa, mas sempre com os olhos bem abertos.

Um dia, vi “um cabo da guarda fiscal” a entrar em casa. Na loja que tinha no andar térreo da sua casa estava a sua mulher a trabalhar “Bateu à porta e perguntou «então, o senhor Artur?» A minha mulher disse-lhe que não estava cá”. O guarda fiscal insistiu que queria falar com ele porque “o tinha visto ir agora com uma jarra de vinho para cima”. A mulher insistiu que não era ele, que estaria a fazer confusão com certeza. Acabou por se ir embora, não se sabe se muito ou se pouco convencido. Artur safou-se. Ao fim de três anos, a PIDE acabou por levantar o mandato de detenção.

Artur antes de encaminhar, ele próprio, homens para França esteve emigrado. Não foi uma viagem fácil. Acabou por ser detido pelas autoridades francesas por passagem ilegal da fronteira. Esteve alguns dias detido, e “até engordei”, gracejou. Foi a salto, ele e mais seis. Tinha 19 anos. “Andei lá a trabalhar descalço numa pedreira ainda bastante tempo. Os sapatitos que tinha levado rebentaram. Eu bem queria que o patrão me desse dinheiro para eu comprar uns sapatos”, mas nada... “Ainda andei a trabalhar dois meses descalço” Depois “lá me arranjei”.

Mas Artur não ficou muito tempo em França. Poucos anos depois depois regressou a Fóios. “Quando vim para cá era com a ideia de voltar. Mas o meu pai deu-me aqui um pequeno terreno para fazer a casa e meti-me logo na passagem dos homens”. À chama da memória sentida lembra-se que “ainda levei bastantes homens, comecei a gostar daquilo, arranjei dinheiro para fazer a casa. Sim, ainda arranjei um dinheirito. Nunca quis saber do banco para nada.” Nesta humilde casa, neste sentido momento de encanto por um passado que, subitamente, alguém lhe fez recordar, um regresso àqueles tempos do jovem Artur. De fugas e contrafugas, de dias idos.

Um passado que António Cabanas, vice-presidente da Câmara Municipal de Penamacor, sociólogo já retratou no livro “Carregos”, o contrabando na zona da raia. O interesse sobre este Portugal levou-o a trabalhar diversas fontes. Uma delas foram os arquivos da Junta de Freguesia da Meimoa, onde um facto lhe despertou a atenção. O investigador disse ao JF que quando se requeria um passaporte para se deslocar a França, por exemplo, as autoridades entravam em campo para averiguar “o currículo” e as “referências” do solicitador do documento. O receio levava a que se tentasse apurar, nomeadamente, as condições financeiras de quem pedia o documento. António Cabanas diz que a junta em causa não se comprometia, usando de algumas armadilhas gramaticais como “supomos” ou “julgamos” que tinha condições económicas e que não seria caso de emigração. “A Junta tentava ajudar sem se comprometer”.


Toda a reportagem na edição semanal

Autor: Nuno Francisco in "Jornal do Fundão"

Sem comentários: